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Contos De Clarice Lispector

Contos De Clarice Lispector

À Procura de Uma Dignidade

A Srª Jorge B. Xavier simplesmente não saberia dizer como entrara. Por algum portão principal não fora. Pareceu-lhe vagamente sonhadora, ter entrado por uma espécie de estreita abertura em meio a escombros de construção, como se tivesse entrado de esguelha por um buraco feito só para ela. O fato é que quando viu já estava dentro.

E quando viu percebeu que estava muito, muito dentro. Andava interminavelmente pelos subterrâneos do Estádio de Futebol do Maracanã, ou, pelo menos, pareceram-lhe cavernas estreitas que davam para salas fechadas, e quando se abriam as salas só havia janelas que davam para o estádio. Este, àquela hora torradamente deserto, reverberava ao extremo sol dum calor inusitado que estava acontecendo naquele dia de pleno inverno.

Então a senhora seguiu por um corredor sombrio. Este a levou igualmente a outro mais sombrio. Pareceu-lhe que o teto dos subterrâneos era baixo.

E aí este corredor a levou a outro que a levou por sua vez a outros.

Dobrou o corredor deserto. E aí em outra esquina.

Então continuou automaticamente a entrar pelos corredores que sempre davam para outros corredores. Onde seria a sala da aula inaugural? Pois junto desta encontraria as pessoas com quem marcara o encontro. A conferência era capaz de já ter começado. Ia perdê-la, ela que se forçava a não perder nada de cultural porque assim se mantinha jovem por dentro, já que até por fora ninguém adivinhava que tinha quase setenta anos, todos lhe davam uns cinqüenta e sete.

Mas agora, perdida nos meandros internos e escuros do Maracanã, a senhora já arrastava pés pesados de velha.

Foi então que subitamente encontrou num corredor um homem surgido do nada, e perguntou-lhe pela conferência que o homem que também surgira repentinamente ao dobrar o corredor.

Então este segundo homem informou que havia visto perto da arquibancada da direita, em pleno estádio aberto, “duas damas e um cavalheiro, uma de vermelho”. A Srª Xavier tinha dúvida de que essas pessoas fossem o grupo com quem devia se encontrar antes da conferência, e na verdade já perdera de vista o motivo pelo qual caminhava sem nunca mais parar. De qualquer modo seguiu o homem para o estádio, onde parou ofuscada pelo espaço oco de luz escancarada e de mudez aberta, o estádio nu desventrado, sem bola nem futebol. Sobretudo sem multidão. Havia uma multidão que existia pelo vazio de sua ausência absoluta.

As duas damas e o cavalheiro já haviam sumido por algum corredor?

Então o homem disse com desafio exagerado: “Pois vou procurar para a senhora e vou encontrar de qualquer jeito essa gente, eles não podem ter sumido no ar”.

E de fato de muito longe ambos os viram. Mas um segundo depois tornaram a desaparecer. Parecia um jogo infantil onde gargalhadas amordaçadas riam da Srª Jorge B. Xavier.

Então entrou com o homem por outros corredores. Aí este homem também sumiu numa esquina.

A senhora já desistira da conferência, que no fundo pouco lhe importava. Contanto que saísse daquele emaranhado de caminhos sem fim. Não haveria porta de saída? Então sentiu como se estivesse dentro dum elevador enguiçado entre um andar e outro. Não haveria porta de saída?

E eis que subitamente lembrou-se das palavras de informação da amiga pelo telefone: “Fica mais ou menos perto do Estádio do Maracanã”. Diante dessa lembrança estendeu o seu engano de pessoa avoada e distraída que só ouvia as coisas pela metade, a outra ficando submersa. A Srª Xavier era muito desatenta. Então, pois, não era no Maracanã o encontro, era apenas perto dali. No entanto o seu pequeno destino quisera-a perdida no labirinto.

Sim, então a luta recomeçou pior ainda: queria por força sair de lá e não sabia como nem por onde. E de novo apareceu no corredor aquele homem que procurava as pessoas e que de novo lhe garantiu que as acharia porque não podiam ter sumido no ar. Ele disse assim mesmo:

– As pessoas não podem ter sumido no ar!

A senhora informou:

– Não precisa mais se incomodar de procurar, sim? muito obrigado, sim? porque o lugar onde preciso encontrar as pessoas não é no Maracanã.

O homem parou imediatamente de andar para olhá-la perplexo:

– Então que é que a senhora está fazendo aqui?

 Ela quis explicar que sua vida era assim mesmo, mas nem sequer sabia o que queria dizer com o “assim mesmo” nem com “sua vida”, por isso nada respondeu. O homem insistiu na pergunta, entre desconfiado e cauteloso: “Que é que ela estava fazendo ali?” Nada, respondeu apenas em pensamento a senhora, já então pressentes a cair de cansaço. Mas não lhe respondeu, deixou-o pensar que era louca. Além do mais ela nunca se explicava. Sabia que o homem a julgava louca – e quem dissera que não? Se bem que soubesse ter a chamada saúde mental tão boa que só podia se comparar com sua saúde física. Saúde física já agora rebentada, pois rastejava os pés de muitos anos de caminho pelo labirinto. Sua via-crucis. Estava vestida de lã muito grossa e sufocava suada ao inesperado calor dum auge de verão, esse dia de verão que era um aleijão do inverno. As pernas lhe doíam, doíam ao peso da velha cruz. Já se resignara dalgum modo a nunca mais sair do Maracanã e a morrer ali de coração exangue.

Então, e como sempre, era só depois de desistir das coisas desejadas que elas aconteciam. O que lhe ocorreu de repente foi uma idéia: “Mas que velha maluca eu sou”. Em vez de continuar a perguntar pelas pessoas que não estavam lá, porque não procurava o homem e indagava como se saía dos corredores? Pois o que queria era apenas sair e não encontrar-se com ninguém.

Achou finalmente o homem, ao dobrar duma esquina. E falou-lhe com voz um pouco trêmula e rouca, por cansaço e medo de ter vã esperança. O homem desconfiado concordou mais do que depressa que era melhor mesmo que ela fosse embora para casa e disse-lhe com cuidado: “A senhora parece que não está muito bem da cabeça, talvez seja este calor esquisito”.

Dito isto, entrou com ela no primeiro corredor e na esquina avistavam-se os dois largos portões abertos. Apenas assim? Tão fácil assim? Apenas assim.

Então a senhora pensou sem nada concluir que só para ela é que se havia tornado impossível achar a saída. A Srª Xavier estava apenas um pouco espantada e ao mesmo tempo habituada. Na certa, cada um tinha o próprio caminho a percorrer interminavelmente, fazendo isto parte do destino, no qual ela não sabia se acreditava ou não.

E havia o táxi passando. Mandou-o parar e disse-lhe, controlando a voz que estava cada vez mais velha e cansada:

– Moço, não sei bem o endereço, esqueci. Mas o que sei é que a casa fica numa rua-não-me-lembro-mais-o-quê mas que fala em “Gusmão” e faz esquina com uma rua se não me engano chamada Coronel-não-sei-quê.

O chofer foi paciente como com uma criança: “Pois então não se afobe, vamos procurar calmamente uma rua que tenha Gusmão no meio e Coronel no fim”, disse virando-se para trás num sorriso, e aí piscou-lhe um olho de conivência que parecia indecente. Partiram aos solavancos que lhe sacudiam as entranhas.

Então de repente reconheceu as pessoas que procurava e que se achavam na calçada defronte duma casa grande. Era porém como se a finalidade fosse chegar e não a de ouvir a palestra que a essa hora estava totalmente esquecida, pois a Srª Xavier se perdera do seu objetivo. E não sabia em nome de que caminhara tanto. Então viu que se cansara para além das próprias forças e quis ir embora, a conferência era um pesadelo. Pediu a uma senhora importante e vagamente conhecida e que tinha carro com chofer para levá-la para casa, porque não estava se sentindo bem com o calor estranho. O chofer só viria daí a uma hora. Então a Srª Xavier sentou-se numa cadeira que tinham posto para ela no corredor, sentou-se empertigada na sua cinta apertada, fora da cultura que se processava defronte na sala fechada. Donde não se ouvia som algum. Pouco lhe importava a cultura. E ali estava nos labirintos de sessenta segundos e de sessenta minutos que a encaminhariam a uma hora.

Então a senhora importante veio e disse assim: que a condução estava à porta mas que lhe afirmava que, como o motorista avisara que ia demorar muito, em vista de a senhora não estar passando bem, mandara parar o primeiro táxi que vira. Porque a Srª Xavier não tivera ela própria a idéia de chamar um táxi, se submetera aos meandros do tempo de espera. Então agradeceu ao motorista com extrema delicadeza. A senhora era sempre muito delicada e educada. Entrou no táxi e disse:

– Leblon, por obséquio.

Tinha o cérebro oco, parecia-lhe que sua cabeça estava em jejum.

Daí a pouco notou que rodavam e rodavam mas que de novo ter minavam por voltar a uma mesma praça. Porque não saíam de lá? Não havia de novo caminho de saída? O motorista acabou confessando que não conhecia a Zona Sul, que só trabalhava na Zona Norte. Ela não sabia como ensinar-lhe o caminho. Cada vez mais a cruz dos anos pesava-lhe e a nova falta de saída apenas renovava a magia negra dos corredores do Maracanã. Não havia meio de se livrarem da praça? Então o motorista disse-lhe que tomasse outro táxi, e chegou mesmo a fazer sinal para que passara ao lado. Ela agradeceu comedidamente, fazia cerimônia com as pessoas, mesmo com as conhecidas. Além do que era muito gentil. No novo táxi disse a medo:
– Se o senhor não se incomodar, vamos para o Leblon.

E simplesmente saíram logo da praça e entraram por novas ruas.

Foi ao abrir com a chave a porta do apartamento que teve vontade apenas mental e fantasiada de soluçar bem alto. Mas ela não era de soluçar nem de reclamar. De passagem avisou à empregada que não atenderia telefonemas. Foi direto ao quarto, tirou toda a roupa, engoliu sem água uma pílula e esperou que esta desse resultado.
Enquanto isso, fumava. Lembrou-se de que era mês de agosto, dava azar. Mas setembro viria um dia como porta de saída. E setembro era por algum motivo o mês de maio: um mês mais leve e mais transparente. Foi vagamente pensando nisso que a sonolência finalmente veio e ela adormeceu. Quando acordou, horas depois, viu que chovia uma chuva fina e gelada, fazia um frio de lâmina de faca. Nua na cama, ela enregelava. Então achou muito curioso ser uma velha nua. Lembrou-se de que planejara comprar uma écharpe de lã. Olhou o relógio: ainda encontraria o comércio aberto. Tomou um táxi e disse:

– Ipanema, por obséquio.

O homem disse:

– Como é que é? É para o Jardim Botânico?

– Ipanema, por favor – repetiu a senhora, bastante surpreendida. Era o absurdo do desencontro total: pois que havia em comum entre as palavras Ipanema e Jardim Botânico? Mas de novo pensou vagamente que “era assim mesmo a sua vida”.

Fez rapidamente a compra e viu-se na rua já escurecida sem ter que fazer. Pois o Sr. Jorge B. Xavier viajara para São Paulo no dia anterior e só voltaria no dia seguinte.

Então, de novo em casa, entre tomar nova pílula para dormir ou fazer alguma outra coisa, optou pela segunda hipótese, pois lembrou-se de que agora poderia voltar a procurar a letra de câmbio perdida. O pouco que entendia era que aquele papel representava dinheiro. Há dois dias procurara minuciosamente pela casa toda, e até pela cozinha, mas em vão. Agora lhe ocorria: e por que não debaixo da cama? Talvez. Ajoelhou-se no chão. Mas logo cansou-se de só estar apoiada nos joelhos e apoiou-se também nas duas mãos.

Então percebeu que estava de quatro.

Assim ficou um tempo, talvez meditativa, talvez não. Quem sabe, a Srª estivesse cansada de ser um ente humano. Estava sendo uma cadela de quatro. Sem nobreza nenhuma. Perdida a altivez última. De quatro, um pouco pensativa talvez. Mas debaixo da cama só havia poeira.

Levantou-se com bastante esforço das juntas desarticuladas e viu que nada mais havia a fazer senão considerar com realismo – e era com um esforço penoso que via a realidade – considerar com realismo que a letra estava perdida e que continuar a procurá-la seria nunca sair do Maracanã.

E, como sempre, já que desistira de procurar, ao abrir a gavetinha de lenços para tirar um – lá estava a letra de câmbio.

Então a senhora, cansada pelo esforço de ter ficado de quatro, sentou-se na cama e começou muito à toa a chorar de manso. Parecia mais uma lengalenga árabe. Há trinta anos não chorava, mas agora estava tão cansada. Se é que aquilo era choro. Não era. Era alguma coisa. Finalmente, assoou o nariz. Então pensou o seguinte: que ela forçaria o “destino” e teria um destino maior. Com força de vontade se consegue tudo, pensou sem a menor convicção. E isso de estar presa a um destino ocorrera-lhe porque já começara sem querer a pensar em “aquilo”.

Aconteceu então que a senhora também pensou o seguinte: era tarde demais para ter um destino. Pensou que bem faria qualquer tipo de permuta com outro ser. Mas lhe ocorreu que não havia com quem se permutar: quem quer que fosse, ela era ela e não podia se transformar em outra única. Cada um era único. A Srª Jorge B. Xavier também era.

Mas tudo o que lhe acontecera ainda era preferível a sentir “aquilo”. E eis que de repente “aquilo” veio com seus longos corredores sem saída. E sem o menor pudor, “aquilo” era a fome dolorosa de suas entranhas, fome de ser possuída pelo inalcançável ídolo de televisão. Não perdia um só programa dele. Então, já que não pudera se impedir de pensar nele, o jeito era deixar-se pensar e relembrar o rosto de menina-moça do cantor Roberto Carlos, meu amor.

Foi lavar as mãos sujas de poeira e viu-se no espelho da pia. Então a Srª Xavier pensou assim: “Se eu quiser muito, mas muito mesmo, ele será meu por ao menos uma noite”. Acreditava vagamente na força de vontade. De novo se emaranhou no desejo, que era retorcido e estrangulado.

Mas, quem sabe?, se desistisse de Roberto Carlos, então é que as coisas entre ele e ela aconteceriam. A Srª Xavier meditou um pouco sobre o assunto. Então espertamente fingiu que desistia de Roberto Carlos. Mas bem sabia que a desistência mágica só dava resultados positivos quando era real, e não apenas um truque como modo de conseguir. A realidade exigira muito da senhora. Examinou-se ao espelho para ver se o rosto se tornara bestial sob a influência de seus sentimentos. Mas era um rosto quieto que já deixara há muito de representar o que sentia. Aliás, seu rosto nunca exprimira senão boa educação. E agora era apenas a máscara duma mulher de setenta anos. Sua cara levemente maquilhada pareceu-lhe e dum palhaço. A senhora forçou sem vontade um sorriso para ver se melhorava. Não melhorou.

Por fora – viu no espelho – ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por dentro não era estorricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva úmida, mole assim como gengiva desdentada.

Então procurou um pensamento que a espiritualizasse ou que a estorricasse de vez. Mas nunca fora espiritual. E por causa de Roberto Carlos a senhora estava envolta nas trevas da matéria, onde ela era profundamente anônima.

De pé no banheiro era tão anônima quanto uma galinha.

Numa fração de fugitivo segundo quase inconsciente, vislumbrou quase todas as pessoas anônimas. Porque ninguém é o outro e outro não conhecia o outro. Então – então a pessoa é anônima. E agora estava emaranhada naquele poço fundo e mortal, na revolução do corpo. Corpo cujo fundo não se via e que ra a escuridão das trevas malignas de seus instintos vivos como lagartos e ratos. E tudo fora de época, fruto fora de estação? Por que nunca lhe tinham avisado as outras velhas que até o fim isso podia acontecer? Nos homens velhos bem vira olhares lúbricos. Mas nas velhas não. Fora de estação. E ela viva como se ainda fosse alguém, ela que não era ninguém.

A Srª Jorge B. Xavier era ninguém.

Então quis ter sentimentos bonitos e românticos em relação à delicadeza de rosto de Roberto Carlos. Mas não conseguiu: a delicadeza dele apenas a levava a um corredor escuro de sensualidade. E a danação era a lascívia. Era fome baixa: ela queria comer a boca de Roberto Carlos. Não era romântica, ela era grosseira em matéria de amor. Ali no banheiro, defronte do espelho da pia.

Com sua idade indelevelmente maculada. Sem ao menos um pensamento sublime que lhe servisse de leme e que enobrecesse a sua existência.

Começou a desmanchar o coque dos cabelos e a penteá-los devagar. Estavam precisando de nova pintura, as raízes brancas já apareciam. A senhora pensou o seguinte: na minha vida nunca houve um clímax como nas histórias que se lêem. O clímax era Roberto Carlos. Meditativa, concluiu que iria morrer secretamente assim como secretamente vivera. Mas também sabia que toda morte é secreta.

No fundo de sua futura morte imaginou ver no espelho a figura cobiçada de Roberto Carlos, com aqueles macios cabelos encaracolados que ele tinha. Ali estava, presa ao desejo fora de estação assim como o dia de verão em pleno inverno. Presa no emaranhado dos corredores do Maracanã. Presa ao segredo mortal das velhas. Só que ela não estava habituada a ter quase setenta anos, faltava-lhe prática e não tinha a menor experiência.

Então disse algo e bem sozinha:

– Robertinho Carlinhos.

E acrescentou ainda: meu amor. Ouviu sua voz com estranheza, como se estivesse pela primeira vez fazendo, sem nenhum pudor ou sentimento de culpa, a confissão que no entanto deveria ser vergonhosa. A senhora devaneou que era capaz de Robertinho não querer aceitar o seu amor porque tinha ela própria a consciência de que este amor era muito piegas, melosamente voluptuoso e guloso. E Roberto Carlos parecia tão casto, tão assexuado.

Seus lábios levemente pintados ainda seriam beijáveis? Ou por acaso era nojento beijar boca de velha? Examinou bem de perto e inexpressivamente os próprios lábios. E ainda inexpressivamente cantou o estribilho da canção mais famosa de Roberto Carlos: “Quero eu você me aqueça neste inverno e que tudo o mais vá para o inferno”.

Foi então que a Srª Jorge B. Xavier bruscamente dobrou-se sobre a pia como se fosse vomitar as vísceras e interrompeu sua vida com uma mudez estraçalhante: tem! que! haver! uma! porta! de saííííííída!

Clarice Lispector
Extraído do site ebaH

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Os Bonecos de Barro

 

O que ela amava acima de tudo era fazer bonecos de barro — o que ninguém lhe ensinara. — Trabalhava numa pequena calçada de cimento em sombra, junto à última janela do porão. Quando queria com muita força ia pela estrada até ao rio. Numa de suas margens, escalável embora escorregadia, achava-se o melhor barro que alguém poderia desejar: branco, maleável, pastoso: frio. Só em pegá-lo, em sentir sua frescura delicada, alegrezinha e cega, aqueles pedaços timidamente vivos, o coração da pessoa se enternecia úmido quase ridículo. Virgínia cavava com os dedos aquela terra pálida e lavada — na lata presa à cintura iam se reunindo os trechos amorfos. O rio em pequenos gestos molhava-lhe os pés descalços e ela mexia os dedos úmidos com excitação e clareza. As mãos livres, ela então cuidadosamente galgava a margem até a extensão plana . No pequeno pátio de cimento depunha a sua riqueza. Misturava o barro à água, as pálpebras frementes de atenção — concentrada, o corpo à escuta, ela podia obter uma porção exata de barro e de água numa sabedoria que nascia naquele mesmo instante, fresca e progressivamente criada. Conseguia uma matéria clara. e tenra de onde se poderia modelar um mundo.

Como, como explicar o milagre… Ela se amedrontava pensativa. Nada dizia, não se movia, mas interiormente sem nenhuma palavra repetia: Eu não sou nada, não tenho orgulho, tudo me pode acontecer; se quiser, me impedirá de fazer a massa de barro; se quiser, pode me pisar, me estragar tudo; eu sei que não sou nada. Era menos que uma visão, era uma sensação no corpo, um pensamento assustado sobre o que lhe permita conseguir tanto barro e água e diante de quem ela devia humilhar-se com seriedade . Ela lhe agradecia com uma alegria difícil, frágil e tensa; sentia em alguma coisa como o que não se vê de olhos fechados. Mas o que não se vê de olhos fechados tem uma existência e uma força, como o escuro, como a ausência — compreendia-se ela, assentindo feroz e muda com a cabeça. Mas nada sabia de si, passaria inocente e distraída pela sua realidade sem reconhecê-la; como uma criança, como uma pessoa.

Depois de obtida a matéria, numa queda de cansaço ela poderia perder a vontade de fazer bonecos. Então ia vivendo para a frente como uma menina.

Um dia, porém, sentia seu corpo aberto e fino, e no fundo uma serenidade que não se podia conter, ora se desconhecendo, ora respirando trêmula de alegria, as coisas incompletas. Ela mesma insone como luz — esgazeada, fugaz, vazia, mas no íntimo um ardor que era vontade de guiar-se a uma só coisa, um interesse que fazia o coração acelerar-se sem ritmo… de súbito, como era vago viver. Tudo isso também poderia passar, a noite caindo repentinamente, a escuridão fresca sobre o dia morno.

Mas às vezes ela se lembrava do barro molhado, corria alegre e assustada para o pátio: mergulhava os dedos naquela mistura fria, muda e constante como uma espera; amassava, amassava, aos poucas ia extraindo formas. Fazia crianças, cavalos, uma mãe com um filho, uma mãe sozinha, uma menina fazendo coisas de barro, um menino descansando, uma menina contente, uma menina vendo se ia chover, uma flor, um cometa de cauda salpicada de areia lavada e faiscante, uma flor murcha com sol por cima, o cemitério do Brejo Alto, uma moça olhando… Muito mais, muito mais. Pequenas formas que nada significavam, mas que eram na realidade misteriosas e calmas. Às vezes alta como uma árvore alta, mas não eram árvores, m:to eram nada…Ás vezes um pequeno objeto de forma quase estrelada, mas sério e cansado como uma pessoa. Um trabalho que jamais acabaria, isso era o que de mais bonito e atento ela já soubera. Pois se ela podia fazer o que existia e o que não existia!…

Depois de prontos, os bonecos eram colocados ao sol. Ninguém lhe ensinara, mas ela os depositava nas manchas de sol no chão, manchas sem vento nem ardor. O barro secava mansamente, conservava o tom claro, não enrugava, não rachava. mesmo quando seco parecia delicado, evanescente e úmido. E ela própria podia confundi-lo com o barro pastoso. As figurinhas assim, pareciam rápidas, quase como se fossem se desmanchar — e isso era como se elas fossem se movimentar. Olhava para o boneco imóvel e mudo. Por amor ou apenas prosseguindo o trabalho ela fechava os olhos e se concentrava numa força viva e luminosa, da qualidade do perigo e da esperança, numa força de sede que lhe percorria o corpo celeremente com um impulso que se destinava à figura. Quando, enfim, se abandonava, seu fresco e cansado bem-estar vinha de que ela podia enviar, embora não soubesse o que, talvez. Sim ela às vezes possuía um gosto dentro do corpo, um gosto alto e angustiante que tremia entre a força e o cansaço — era um pensamento como sons ouvidos, uma flor no coração: Antes que ele se dissolvesse, maciamente rápido, no seu ar interior, para sempre fugitivo, ela tocava com os dedos num objeto, entregando-o. E, quando queria dizer algo que vinha fino, obscuro e liso — e isso poderia ser perigoso — ela encostava um dedo apenas, um dedo pálido, polido e transparente, um dedo trêmulo de direção. No mais agudo e doído do seu sentimento ela pensava: Sou feliz. Na verdade, ela o era nesse instante, e se em vez de pensar: Sou feliz, procurava o futuro, era porque, obscuramente, escolhia um movimento para a frente que servisse de forma à sua sensação.

Assim juntara uma procissão de coisas miúdas. Quedavam-se quase despercebidas no seu quarto. Eram bonecos magrinhos e altos como ela mesma. Minuciosos, ligeiramente desproporcionados, alegres, um pouco perplexos — às vezes, subitamente, pareciam um homem coxo rindo. Mesmo suas figurinhas mais suaves tinham uma imobilidade atenta como a de um santo. E pareciam inclinar-se, para quem as olhava, também como os santos. Virgínia podia fitá-las uma manhã inteira, que seu amor e sua surpresa não diminuiriam.

— Bonito… bonito como uma coisinha molhada, dizia ela excedendo-se num ímpeto imperceptível e doce.

Ela observava: mesmo bem acabados, eles eram toscos como se pudessem ainda ser trabalhados. Mas vagamente, ela pensava que nem ela nem ninguém poderia tentar aperfeiçoá-los sem destruir sua linha de nascimento . Era como se eles só pudessem se aperfeiçoar por si mesmos, se isso fosse possível.

As dificuldades surgiam como uma vida que vai crescendo. Seus bonecos, pelo efeito do barro claro, eram pálidos. Se ela queria sombreá-los não o conseguia com o auxílio da cor, e por força dessa deficiência aprendeu a lhes dar sombra ainda por meio de forma. Depois inventou uma liberdade: com uma folhinha seca sob um fino traço de barro conseguia um vago colorido, triste assustada quase inteiramente morto. Misturando barro à terra, obtinha ainda outro material menos plástico, porém mais severo e solene. MAS COMO FAZER O CÉU? Nem começar podia! Não queria nuvens — o que poderia obter, pelo menos grosseiramente — mas o céu, o céu mesmo, com sua existência, cor solta, ausência de cor. Ela descobriu que precisava usar uma matéria mais leve que não pudesse sequer ser apalpada, sentida, talvez apenas vista, quem sabe! Compreendeu que isso ela conseguiria com tintas.

E às vezes numa queda, como se tudo se purificasse, ela se contentava em fazer uma superfície lisa, serena, unida, numa simplicidade fina e tranqüila.

 

Clarice Lispector
Extraído do Projeto Releitura
(O texto acima foi publicado na revista Nordeste – Ano XIII, nº 2, julho de 1960, Recife-PE – e consta do romance O Lustre, publicado em 1946.)